quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O som do abaço


 

 

Pela primeira vez, o rapaz de um município vizinho (ou seria de longa distância?) chegou à cidade grande, cidade com carros, barulhos, desalinhos... “O mundo anda perdido”, ouvimos recentemente a sentença, aliás, o tempo vem nos confundindo, pois as desilusões não são substituídas por alentos há tempos, ouvimos muito e sempre “O mundo anda perdido”.

Perdidos mesmo estavam o violão e seu dono, dentro do vagão de metrô, em um local qualquer nos subterrâneos da cidade maravilhosa. Os barulhos da cidade, no subsolo, são outros: há toques de grandes rodas de metal em contato com seus trilhos deslizantes, há barulhos dos ajustes entre os vagões que a Física dá conta de explicar, as conversas, os choros das crianças, o cansaço silencioso...mas hoje a professora presenciou o som do abraço e se encantou.

O fato veio de um jovem músico, perdido em seu trajeto, pleno de mapas inexplorados: precisava de saber como chegar à escola Nacional de Música. Pediu informação e recebeu algo assustador: delicadeza, afeto e informação. A professora, com seu livro aberto e óculos apoiados no nariz, levantou os olhos e se encheu de ilusões: “Será que o mundo ainda tem jeito?”.

A cidade por cima de toda aquela cena não percebia que das entranhas da terra viriam boas novas, quem sabe uma mensagem de paz ou simplesmente um lampejo de esperança... seria o Natal chegando?

Pois bem, o casal que dava a informação foi surpreendido pela pergunta de seus nomes e, como confirmando a possibilidade de paz entre os homens, o jovem músico compôs uma canção em agradecimento, finalizando a cena com um abraço triplo, abraço que ecoou no dia da professora como uma fonte de futuro...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016


A Família Dionti, de Alan Minas

 

A Família Dionti, texto de Alan Minas, publicado pela Berlendis & Vertecchia Editores, é uma instigante e deliciosa narrativa cuja experiência ficcional nos traga para o olho de um furacão, uma espécie de desvio, uma estrada renovada, um susto, uma risada, um suspiro de alívio, uma saudade... texto carregado de marcações, fruto de um trabalho intenso de busca pela palavra certa, mesmo que, por vezes (pouquíssimas),  nos leve ao excesso da adjetivação, nada  compromete o encanto da criação dos espaços e suas importâncias. Recria palavras, desenvolve um troca-troca semântico inebriante: “Desatou o olhar, palitou o resto da comida e das coisas não ditas agarradas entre os dentes”.

Há uma busca incessante por universos internos que passeia em campos semânticos de raíz, sonho, entender-se... é uma filosofia de quem conhece o mundo pelo empirismo. Personagens que brotam dos fonemas, morfemas, da força da linguagem; uma gama enorme de figuras que transitam ora etéreas, ora concretas nos espaços da narrativa. Tempo e Saudade alcançam categoria de personagem, há a Água também que lava traições, esbanja amores...

Capítulos? Quando abertos, somos encaminhados para o olhar daquele personagem, mas, como na vida, tudo se mistura. Personagens que têm suas ações no conceito do seu nome, por exemplo, Sono, com letra maiúscula, que entra em cena, não apenas a brecha da vida que temos para o descanso, mas uma persona que, sorrateiramente, domina o quarto de Kleiton e Sirino e os faz imergir na noite.

O nome dos personagens é um capítulo à parte: Pedro Muito, Poesina, Salvador (o farmacêutico), Intromelissa, Dona Centenádia, Dona citronela, entre outros, trazem a leveza, a diversão, o humor, a reflexão...esses personagens são descritos com delicadeza, profundos segredos revelados por um narrador que desconhece imparcialidade.

Há um “Surrealismo” entre aspas que se adensa à medida em que, sem trégua, somos submersos nas fantasias propostas pelo enredo: açúcar puro, no mais primitivo de seu doce. “Ilusângela usou o dedo mínimo para acionar o pequeno botão desbotado no canto da foto, deu a partida. As engrenagens da roda-gigante voltaram a funcionar. As luzes, o realejo, tudo alcançou um brilho intenso, e o brinquedo voltou a girar, a girar... sem tempo para acabar.”

Há criatividade sintática, nada que subverta por subverter, mas por torná-la também personagem dos personagens, a estrutura da língua está a serviço de sua criação.

O enredo acontece com histórias paralelas ricas em curiosidades: Kelton, desreprezado, se esvai enquanto Sirino, ressequido, saudade pura, desmancha-se em terra, poeira, ciscos... Irmãos nessa família em que Josué, pai “contido nas três letras”, manobra a ausênciafuga da mãe... a existência do “medo de somar saudades”. O padre se consulta com Vaidalva, a rezadeira de Mundeiró, o médico, Sofia e Samanda, disputando bonitezas, Vô Abelino...uma beleza.

Amores, pureza, enxurradas, vazamentos, corredeiras, uma história de muitas correntes...

terça-feira, 31 de maio de 2016

CAMPO GRANDE


De pronto, estamos diante de um grande susto: o abandono. Mas o que há conosco quando nos aterrorizamos com isso? Nós nos abandonamos diariamente, uns aos outros.
As folhas da amendoeira balançavam com o céu ao fundo. Verdes e azuis em harmonia abrem o filme de Sandra kogut e o olhar percorre outras possibilidades reais. A trama acontece numa cidade em transformação, com ruídos e agitação, típicos sinais de progresso. Uma menina carrega consigo um nome e um endereço anotados em um pedaço de papel, registro de uma possível nova identidade?
As cenas transcorrem numa naturalidade angustiante, uma criança deixada em uma casa sem muita explicação, em uma família em processo de desfecho. E a tentativa de desvendar aquela nova situação cria o conflito que se desenvolverá em belas imagens, compostas por olhares reveladores. Como em Mutum, Sandra kogut protagoniza o olhar infantil, não como narrativa eloquente, repleta de ações, clichês de pronto entendimento, mas com pausas e silêncios, com olhar de fato, reflexo do que se está sentindo. Os atores-mirins dão o ar que fundamenta todo o eixo complexo criado por Kogut: famílias sendo refeitas, desejos e frustrações humanas, e, sobretudo, a ausência do cuidado. Regina, personagem vivida por Carla Ribas, parte para uma experiência que a transporta para lugares nunca vistos, o lugar dos espaços de uma cidade que aparece muito fora dos padrões de cartão postal, o lugar de uma mulher que se vê sob a análise da filha “você não sabe cuidar de ninguém” e se lança a achar a família daquelas crianças ...
Campo Grande, um filme que derrama em nós algumas cenas poéticas, como o momento em que a adolescente e o menino dividem a tela com uma bela canção que fala de amor, ou ainda com a imagem da mulher que aparece, na sequência dos fatos, sendo despida aos poucos à medida que sua casa vai esvaziando com a ausência da filha, dos móveis, dos livros. Belo filme. E seguimos pela calçada...



sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Olheiro

Estamos em destaque. O mundo nos verá a partir do início da Copa da Fifa. As ruas estão ainda mornas. A campanha presidencial está na rua. E os brasileiros ficarão em casa e verão pela TV os jogos. Quer assistir à final? É simples: compre o bilhete e vá, dependendo do tipo de ingresso, você terá que desembolsar R$2 mil. Seja otimista: “treino é treino, jogo é jogo”.
Logo de cara teremos uma partida com a Croácia que apresenta na sua equipe um brasileiro. Coitado, está tendo que justificar por que não joga pelo Brasil... há muitas explicações pra isso, uma delas é o sonho de uma vida melhor.
O mundo anda meio mal, mas o Brasil avança sua economia e conquista seu lugar no quadro mundial como uma nação que exporta, que cresce e que realiza a “maior Copa da história”. “A Copa da paz, da inclusão, da tolerância, do diálogo e do entendimento...”. O país, de fato, precisa disso tudo, mas clama também pela igualdade. Liberdade de expressão temos que vigiar e manter; fraternidade, conquistar com debate e garantia dos direitos, e, igualdade, exigir. Somos um país rico, estamos cada vez mais conscientes disso, mas não somos iguais. As diferenças de oportunidade estão nos ônibus, nas portas de hospital, nas filas de defensoria pública, nos guichês de atendimento da previdência social, nas escolas.
“Os olhos e os corações do mundo estarão voltados para o Brasil...”. O que temos para mostrar? O povo. Fala-se em legado, mas fala-se também que tudo já estava planejado, independente do evento internacional. O povo que deve ser o maior beneficiário, ainda enfrenta problemas básicos seríssimos, não somos pessimistas, vivemos nas ruas, nas filas, no país real... será que precisamos de um olheiro que nos leve para um lugar onde as igualdades estejam garantidas?

(Publicado em www.bafafa.com.br)
Horas, minutos, segundos


O dia doeu em mim. As luzes mal tinham se expandido e a cidade acobertada dos restos de ontem. Meu corpo ainda inerte, pedra seca, reclamava uma juventude que não volta mais. Esperei meus filhos virem se empoleirar sobre nós, e nada, já haviam crescido e fugiram da velha casa. O relógio batera seis e quinze naquele que seria um dia de algum metal que nada vale, pois havia começado em dores de corpo e alma. Saudades, vínculos estraçalhados e pouca luz.
Levantei, sozinho, encurvado ainda, uma trava que atravessou minha coluna agora sem cartilagens macias. Eita, vida dura!!! Diria minha avó. Eu não. Eita, vida... sabendo disso, visto-me e saio para abrir a janela da casa. Lembro-me de uma grande janela verde que fechava a cozinha de piso branco e vermelho. Em cima da geladeira, um relógio que soava os segundos com o movimento de um bonequinho esquimó, encantamento para os olhos infantis. Não, minha janela hoje é branca e dá para uma rua barulhenta, barulhos me deformam...
Horas mais tarde, já em posição humana, bípede que comanda a vida, ou imagina isso, recorro aos jornais como exercício de colocação no mundo real. Vi, hoje, 2014, que no Ceará, em lugar conhecido por Cafundó, chegou a luz elétrica. Que bom que chegou!!! Nossa, só hoje?... Isso me coloca de volta nos minutos que faltam para meu embarque. Rumo ao aeroporto, penso que nos viciamos em riquezas de pouco valor, e meu dia passa lentamente.
As “crianças” me ligaram para saber se estou bem, digo que sim e que na volta faríamos um almoço de família, todos juntos: pai, mãe, filhos... Entro no avião e saio para um lugar no futuro. Alguns segundos me deram essa impressão de tudo que disse. Mas, o fato, é que, agora já estou na metade do dia. Volto de ônibus para casa e espero a tarde sem dor.

Ereto, com ar de superioridade, de volta à realidade, enfrento o resto do dia. As vozes de hoje ordenam ações de pai, cidadão, homem seguindo a viagem. Numa piscadela de olhos, vejo correndo em minha direção, meus filhos, alegres em me ver. Jogam-se sobre mim e falam ao mesmo tempo o dia que tiveram, finjo entender e digo qualquer coisa e recomeço, renovado, com alívio, eles ainda não se foram...
Eu não sou macaco

—Não, meu filho, você não é macaco...
— Mas, pai, o Neymar disse que todo mundo é macaco.
— Mas foi em outro sentido...
— Mãe, o papai está desmentido o Neymar... — gritou o menino de 7 anos com força de quem quer proteger –se de um grande mal.
— Carlinhos, o papai está querendo dizer...
— Eu não estou querendo dizer nada, eu estou dizendo que nós não somos macacos e que o que o jogador quis demonstrar é que...
— Não complica, Arnaldo, você acha que o menino vai entender sua filosofia.
— Mas não fui eu que disse que nós somos macacos, estou tentando explicar pro Carlinhos que o Neymar disse uma coisa querendo dizer outra, só isso.
— Afinal de conta, pai, você está ou não está mentindo?
— Se vira, Marcelo, a bola é tua — sentenciou a mulher, com ar de desafio.
— Bom, vamos lá: meu filho, o que o Neymar quis dizer é que todos viemos do macaco, independente de nossa cor, sabe?
O menino arregalou o olho e ficou sem entender, parecia que o tinham colocado numa gaiola e ele teria que esperar que o trouxessem bananas para comer. O contexto ainda não tinha sido criado na sua linguagem, e a confusão estava armada.
— Pai, os jogadores de futebol são macacos? Só eles vieram dos macacos? Se for assim, quero ser jogador de futebol...
O nó aumentou e a família teve que se unir. Pai e mãe não sabiam e não queriam dizer que se tratava de um ato de preconceito do torcedor, não queriam expor ao filho o mundo estranho em que vivem, a preservação da inocência deveria ser mantida, não queriam que Carlinhos entendesse que o preconceito é criação humana.
— Perfeito, Carlinhos, se você quer ser jogador de futebol, então que seja..., mas você é gente, não é macaco...
Carlinhos se deu por satisfeito e a vida continuou alegre para o menino. O pai e a mãe seguiram vendidos...

(Publicada em www.bafafa.com.br)
El Cid de La Mancha

As lágrimas aqui no Rio de Janeiro tomaram proporções celestiais. No momento em que escrevo, chove bastante e a cidade é lavada com fôlego de faxina de fim de festa. Sim, perdemos e o hexa não foi dessa vez. Garantimos alguma alegria durante o campeonato, mas o fato é que a Alemanha inventou o gol do susto...explico: assustados, sem acreditar que estávamos abrindo o campo, os jogadores fizeram tudo o que havia sido combinado, há pelo menos seis anos. Tocaram a bola e meteram foi gol contra o país do futebol.
A partida começou e estávamos certos de que não seria fácil a batalha, mas sentíamos que a guerra estava ganha. Nosso exército corria confiante, carregados com o manto do pentacampeonato. A alegria parecia certa e as cervejarias já alcançavam índices astronômicos de venda. O ambulante já tinha feito encomendas para as próximas jornadas nas portas dos estádios... Minas Gerais confidenciava-se: somos a capital!!!
Mas os ventos chegaram com força total e os moinhos avançavam como monstros paralisando as pernas milionárias que tentavam entender o que estava acontecendo. A torcida ainda deu uma força, lutou com palavras e gritos, gestos que empurravam o vento maldito para o outro lado... e nada. Inimigos sem precedente fizeram um gol seguido de outro e foi assim, balançando o placar, que saíram de campo para o intervalo.
Os comentaristas da transmissão televisiva tentavam entender e diziam o que parecia ser um discurso disfarçado de equilíbrio ensaiado, mas o desespero já havia se instalado.
Os guerreiros invencíveis voltaram mancando moralmente, abatidos pelas pernas tortas e cansadas do futebol de ontem à noite. Pareciam ter passado a noite treinando e agora não davam mais conta. No lugar do manto, via-se uma nova tentativa de que a camisa amarela tremulasse nos braços do adversário. E o jogo recomeçou.
No canto do campo, avista-se Rocinante, aguardando seu Sancho Pança terminar o jogo. Gramava aqui e ali e ouvia sem acreditar que o Brasil estava perdendo e seu Don Quixote, mais uma vez, mudo à espera de uma grande vitória.
Não deu. A chuva ainda lava a cidade do Rio de Janeiro e a vizinhança ficou em silêncio, não aquele de 50. Talvez à espera de El Cid, aquele que, mesmo à beira da morte, encimando seu cavalo, exibindo seu garbo e poder, ganha a guerra. Mas não deu. Somos essa mistura de poder e sonho... nem sempre dá pra ganhar.
Lendo as redes sociais, vi que ainda somos brasileiros, pois não podemos perder a piada, né? O texto dizia: “bem fez o Neymar que pegou um atestado”.
É isso, agora, só daqui a quatro anos. Isso é que é duro... até a próxima.


(Publicada em www.bafafa.com.br)